Estruturação de actividades: um estudo sobre a leitura de canções de repertório na aula de formação musical

  • Mafalda Lemos Pereira

Resumo

O presente estudo incidiu sobre a estruturação das Actividades de Leitura de Canções de Repertório (ALCR) em aulas de Formação Musical (FM), e teve como principal objectivo identificar os tipos de tarefas envolvidas na realização destas actividades. Paralelamente, pretendeu-se averiguar se os professores de FM usavam as particularidades do repertório, nomeadamente a presença de texto, para criar momentos mais performativos em aula. O estudo, de carácter exploratório, implicou a observação de 14 ALCR gravadas em aulas de FM do ensino especializado de música, tendo-se adoptado uma metodologia mista: numa primeira fase, procedeu-se à recolha e análise qualitativa de dados para «categorizar» as tarefas realizadas; numa segunda fase, procedeu-se à análise quantitativa desses mesmos dados, para perceber o quanto estas tarefas eram significativas em termos de ocorrência e de duração durante a actividade. Os resultados permitiram identificar e classificar cinco possíveis componentes (i.e., grupos de tarefas) envolvidas na estruturação das ALCR. As componentes Preparação para a Leitura, Leitura do Repertório, e Estratégias de Correcção da Leitura revelaram ser as mais importantes, uma vez que ocorreram em todas as ALCR observadas. Opcionalmente, as ALCR também podiam incluir Tarefas Complementares e Actividades Pós-Leitura (formativas ou performativas). Nas ALCR observadas, as tarefas direccionadas para a performance foram menos frequentes e, embora o repertório usado incluísse sempre texto associado à melodia, este elemento raramente foi trabalhado. A partir deste estudo, foi possível concluir que as ALCR realizadas no âmbito das aulas de FM se direccionam, essencialmente, para o desenvolvimento de competências de leitura, sendo que uma abordagem mais «completa» ou performativa do repertório usado é apenas opcional.

Palavras-Chave: Estruturação de actividades; processos cognitivos da Leitura Musical; transferência de conhecimento; Formação Musical; canções de repertório.

 

Abstract

This study was focused on Reading Activities with Songs from the Repertoire (RASR) at Music Theory classes. The main purpose was to identify the types of tasks involved in the RASR and, additionally, to determine if teachers also created performative moments at the class, considering the characteristics of the repertoire, and specifically the presence of text. This exploratory study involved the observation of 14 RASR carried out at distinct Music Theory classes in specialised music schools. A mixed methodology was adopted, being composed by a first phase of qualitative data collection and analysis to categorise the tasks; and by a second phase of quantitative data analyses to understand how relevant these tasks were in terms of frequency and duration. The results of this study showed that the RASR were structured through different groups of tasks, here named as ‘components’. Reading Preparation, Reading Tasks and Reading Rectification Strategies happened to be the most important components, since they occurred in each of the observed RASR. The Complementary Tasks and Post-Reading Activities (formative or performative) were only optional components. During these activities, the performative tasks were less common and, despite involving the reading of songs, the RASR hardly ever covered the lyrics. Thus, considering the results of this study, the accomplishment of RASR in Music Theory classes appears to be mainly oriented towards the development of reading skills, while a more «complete» or performative approach is only optional.

Keywords: Structuring activities; cognitive processes in Music Reading; processes of pearning transfer; Music Theory; songs from the repertoire.


 

Introdução

 

Estruturação de atividades em aula

São vários os autores que, focados na eficácia do ensino e aprendizagem, defendem que a correcta estruturação das actividades implementadas em aula contribui para a aquisição e para o desenvolvimento de competências (Allen & White, 1980; Cox, 1989; Jang et al., 2010; Nielsen, 2014; Price & Byo, 2002). Jang et al. referem-se, por exemplo, ao «ensino estruturado» como sendo um tipo de ensino que privilegia a estruturação da aula e das actividades nela envolvidas (2010). Trata-se de um modelo de ensino em que o professor guia as actividades da aula em direcção aos objectivos propostos, dando aos seus alunos informação clara e em quantidade suficiente acerca “das expectativas e das formas de alcançar eficazmente os resultados educacionais pretendidos” (2010, p. 589). Estruturar uma aula implica, por um lado, a determinação da sequência das actividades a realizar e, por outro lado, a estruturação de cada actividade em particular. Estruturar uma actividade pressupõe definir um conjunto de objectivos mais pequenos, ou «etapas», que vão sendo alcançados com a ajuda das instruções e estratégias dadas pelo professor (Allen & White, 1980; Duke, 1999; Jang et al., 2010). Por sua vez, a forma como cada professor estrutura e conduz as actividades da aula, traduz a forma como pretende que os alunos desenvolvam determinadas competências (Pedroso, 2004).

Para que a estruturação das actividades tenha um impacto positivo na aprendizagem, é necessário que o professor comunique de forma eficaz. Neste sentido, as suas instruções assumem um papel relevante, uma vez que permitem guiar os alunos durante a realização das tarefas (Fournier et al., 2019; Jang et al., 2010). Para que sejam eficazes, as instruções devem ser claras e concisas e, ao mesmo tempo, ricas em conteúdo (CESE, 2018; Freer, 2009; Price & Byo, 2002). A importância das instruções é ainda reforçada pelo papel que desempenham no «ciclo» de aprendizagem associado à eficácia do ensino, que inclui: 1. a apresentação das tarefas, com a definição dos objectivos e procedimentos (instruções); 2. a resposta/acção dos alunos (execução); e 3. o feedback do professor (Concina, 2015; Davis, 1998; Price & Byo, 2002).

No contexto da prática musical, autores como Duke ou Demorest referem a importância da estruturação das actividades e das instruções dadas por quem as orienta. Num dos seus estudos, Duke observou que “períodos extensos de instrução em performance podem ser vistos como conjuntos de pequenas lições, cada uma direccionada para o cumprimento de um ou mais objectivos específicos” (1999, p. 19). Já para uma abordagem mais prática, Demorest oferece sugestões para estruturar actividades de leitura em ensaios de coro – o autor defende que, num primeiro contacto com a peça, é importante apresentá-la de forma integral para que os alunos se familiarizem com o estilo e carácter; quanto ao isolamento e ao trabalho por secções, o autor sugere começar por material que seja estruturalmente mais importante e não necessariamente pelas mais secções difíceis, tendo em conta que esta última opção, para além de não espelhar necessariamente o essencial da peça, poderá prejudicar a sensação de sucesso e o grau de motivação durante o ensaio (1996).

 

Leitura Musical, background auditivo e uso de estratégias

O domínio da leitura musical é considerado uma competência essencial para os músicos da cultura ocidental, sendo, por essa razão, extremamente valorizado no âmbito do ensino especializado de música (Cruz, 2013; Kopiez & In Lee, 2008; Lehmann & Kopiez, 2012; Pedroso, 2004). Ler música envolve, tal como a leitura em geral, a descodificação de um determinado código (geralmente escrito), o que exige uma série de operações cognitivas complexas. No caso particular da leitura musical, parecem estar envolvidas competências que actuam aos níveis da percepção e do reconhecimento de fenómenos sonoros, como a capacidade de representar mentalmente os sons codificados mesmo antes de os produzir (Fine et al., 2016; Fine & Barry, 2017; Lehmann & McArthur, 2002; Risarto & Lima, 2010; Sloboda, 1978). Este processo, que envolve o uso de competências auditivas como pré-requisito, é ainda mais importante no caso da leitura cantada, considerando que, para cantar, será sempre necessário conhecer e «ouvir» previamente os sons que se encontram a ser lidos (Cruz, 2013; Fine et al., 2016; Vujović & Bogunović, 2012). Assim, a leitura musical, pelo menos a entoada, será o resultado de uma «ponte» entre a percepção de um estímulo visual (notação) e a percepção dos elementos sonoros que lhe estão associados.

Como se processa, no entanto, esta associação? Para que haja associação entre notação e som (ou seja, para que haja efectivamente leitura), é necessário que os elementos sonoros codificados já façam parte do background auditivo do indivíduo (Boso et al., 2010; Cruz, 2010; Fine et al., 2016; Lehmann & Kopiez, 2012; Sloboda, 1978; Vujović & Bogunović, 2012). O background auditivo corresponde ao tipo e à quantidade de informação que se encontra armazenada na memória (ao nível de elementos e de contextos sonoros), e à qual será possível associar a notação musical. Quanto maior for a quantidade e a variedade do background auditivo, e quanto maior a capacidade associação entre som e notação, mais eficaz será o processo de leitura (Lehmann & Kopiez, 2012; Lehmann & McArthur, 2002; Risarto & Lima, 2010; Sloboda, 1978; Zinar, 1976).

As competências de leitura não estão associadas a uma capacidade estática, uma vez que podem ser continuamente desenvolvidas. A melhoria da eficácia da leitura passará não só pela experiência e prática (e pelo contacto com repertório vasto e variado), como pelo uso de estratégias eficazes que permitam superar eventuais dificuldades de leitura a surgir em repertório mais desafiante. As estratégias eficazes (que permitem superar as dificuldades) têm uma maior probabilidade de serem apreendidas e memorizadas a longo prazo e, por isso, de ser transferidas para situações semelhantes (Pressley & Harris, 2008). Para além disso, poderão contribuir para o desenvolvimento das competências metacognitivas, que implicam conhecer os pontos fortes das estratégias, de modo a saber quais e em que tipo de situação as usar (Pressley & Harris, 2008; Vujović & Bogunović, 2012).

No processo de aprendizagem, a adopção de estratégias associadas ao uso informação já armazenada, em especial na memória de longo prazo, pode associar-se ao que se designa como «transferência de conhecimento»[1] – de acordo com diversos autores, isto implica o uso do conhecimento ou de competências previamente adquiridas, presentes na memória de longo prazo, aquando da aquisição de novo conhecimento ou de novas competências (CESE, 2018; Glaser & Bassok, 1989; Lehmann & Kopiez, 2012; Lehmann & McArthur, 2002; Pressley & Harris, 2008; Price & Byo, 2002; Wittrock & Cook, 1975). Logo, trata-se de um processo que permite estabelecer a ligação entre novos tipos de informação e o conhecimento ou competências prévias às quais essa nova informação se possa associar, tornando a sua compreensão e memorização mais eficazes. Esta «transferência» também se traduz num processo dinâmico, uma vez que, ao promover o armazenamento de cada vez mais quantidade de informação, criará condições para que, sempre que necessário, outras transferências de conhecimento se efectuem, originando novos conhecimentos e novas competências (Allen & White, 1980).

Killian & Henry, num estudo focado especificamente em estratégias de leitura, registaram atitudes e procedimentos comuns aos indivíduos que possuíam um bom nível de leitura. Destacaram-se: 1. o reconhecimento do contexto sonoro em que a melodia lida se inseria (background auditivo), e que permitia produzir os respectivos sons durante a leitura; 2. a capacidade de manter uma pulsação estável e de associar com facilidade ritmo e melodia; e 3. a capacidade de, perante as dificuldades, isolar as secções críticas, usando estratégias para resolver os problemas de leitura (Killian & Henry, 2005). Tais procedimentos podem estar relacionados, em parte, com as competências necessárias à eficácia da leitura.

 

Breves considerações sobre a Leitura no âmbito da Formação Musical

Em Portugal, o desenvolvimento das competências de leitura é um dos grandes objectivos da disciplina de Formação Musical, sendo que os professores tendem a incluir ao longo das aulas um grande número de actividades especificamente dedicadas a este domínio (Cruz, 2013; Pedroso, 2004). Embora, de momento, ainda haja pouco estudos focados nas actividades de leitura em aulas de FM, autores como Pedroso (2004), Almeida (2014) ou Cruz (2010) já abordaram aspectos relevantes para esta temática.

Pedroso, por exemplo, refere a importância que é dada pelos professores de FM ao acto de cantar em aula, actividade que desempenha “um papel central, por ser o instrumento próprio de cada um” (2004, p. 12). É seguro afirmar que a maior parte das actividades de leitura realizadas na aula de FM correspondem, de facto, à leitura cantada, o que reforça a importância de desenvolver competências sensoriais (auditivas e melódicas) às quais os alunos possam associar a notação. Um estudo de Almeida focado em técnicas usadas na introdução à leitura, também revelou que os professores de FM, independentemente da técnica que usavam nas aulas, reconheciam e reforçavam a importância de desenvolver competências de entoação sensorial antes de introduzido qualquer contacto com a notação musical (2014).

Sem negar que o desenvolvimento de competências de leitura é fundamental no âmbito da disciplina de FM, há que ter cuidado para que as tarefas de leitura não coloquem de parte o lado mais musical das actividades. Para Cruz, “as partituras só são «música» para quem ouve ou faz música, quando as lê” (2010, p. 18), sendo que “a parte referente à leitura e à escrita só é importante se servir para fazer música, ouvir melhor” (2010, p. 17). Assim, e sem minimizar a importância da leitura na aula de FM, acrescenta-se que estas actividades, quando realizadas, devem ter como objectivo último produzir e compreender a própria música (Cruz, 2010; Pedroso, 2004).

 

Apresentação do Estudo

Âmbito e objetivos

No âmbito das actividades de leitura melódica realizadas na aula de FM, os professores usam com alguma frequência «Canções de Repertório» (canções, lieder, chansons, songs, ou outras peças com características semelhantes), sendo que estas peças reúnem alguns aspectos em particular: ao contrário do que se considera ser a leitura melódica standard (como o excerto de uma melodia vocal ou instrumental, sem texto e sem necessidade de acompanhamento escrito), a «Canção de Repertório» possuiu texto associado à melodia, acompanhamento instrumental escrito (geralmente para piano, original ou com redução), e trata-se geralmente de uma peça/andamento completo que pode ser executada do início ao fim. Considerando estas características, coloca-se a hipótese de este tipo de repertório poder proporcionar, após a fase de leitura, momentos mais performativos e musicalmente mais interessantes nas aulas de FM.

Desta forma, o presente estudo teve como propósito observar e registar os tipos de tarefas associadas à realização de Actividades de Leitura de Canções do Repertório (ALCR) numa aula de FM, averiguando: 1. qual o tipo de estruturação envolvido na realização de ALCR, ou seja, quais os tipos de tarefas («componentes») nelas envolvidas; e 2. Tendo em conta as particularidades do tipo de repertório usado, se os professores optavam por trabalhar outros elementos ou outro tipo de competências, como as performativas, de forma a criar momentos eventualmente mais «musicais» em aula.

 

Método: Participantes, materiais e procedimentos

Para responder a estas questões, elaborou-se um estudo exploratório através do qual se registaram, mediante a observação não-participante e estruturada de diferentes ALCR, as diversas tarefas envolvidas na realização destas actividades. Para o efeito, observaram-se excertos de 14 aulas de FM (através de gravações em vídeo) dedicados especificamente à leitura de canções de repertório.

Neste estudo, participaram 8 professores de FM[2] com idades compreendidas entre os 20 e os 30 anos, tendo as ALCR sido realizadas em turmas de 3º, 4º, 6º e 7º graus. As canções trabalhadas com cada turma foram escolha do professor. A Tabela 1 apresenta o repertório trabalhado em cada ALCR (A), associado ao professor (P) e ao respectivo grau de ensino (G).

 

Tabela 1 - Repertório trabalhado em cada ALCR

P1

4ºG

A1

Schubert, Litaney

P2

7ºG

A2

Schubert, Minnelied

P3

3ºG

A3

Beethoven, Sehnsucht No.1

4ºG

A4

Beethoven, Sehnsucht No 1.

P4

4ºG

A5

Mozart, Zufriedenheit

7ºG

A6

Paisiello, Nel cor piu non mi sento

4ºG

A7

Freitas Branco, Contrastes

P5

6ºG

A8

Fauré, Au bord de l'eau

P6

3ºG

A9

Trad., By the waters of Babylon

4ºG

A10

Schubert, Litaney

P7

4ºG

A11

Schubert, Tischerlied

7ºG

A12

Bach, Das Christi Geist; Ein fest Burg ist unser Gott

3ºG

A13

Bartók, Ablakomba

P8

3ºG

A14

Trad., By The Waters of Babylon

 

Para se proceder à recolha dos dados durante a observação das ALCR, foi elaborada uma grelha de observação na qual se registaram, de forma descritiva e detalhada, as diversas tarefas realizadas ao longo de cada actividade (com o registo das instruções do professor, das acções dos alunos, e da duração de cada tarefa).

Terminada a fase de descrição/registo, procedeu-se à categorização dos dados: reuniram-se as tarefas com objectivos comuns e criaram-se as categorias gerais, ou «componentes», às quais essas tarefas poderiam pertencer; mais tarde, para cada componente identificada e sempre que relevante, criaram-se sub-categorias de tarefas com designações específicas. Este trabalho de análise permitiu identificar, tal como proposto nos objectivos do estudo, os diversos tipos de tarefas envolvidos na estruturação das ALCR.

Concluída esta primeira fase, procedeu-se à análise quantitativa dos dados. Esta revelou-se bastante importante, na medida em que permitiu compreender até que ponto os tipos de tarefas e componentes identificadas eram significativos, a nível de ocorrência e a nível de duração, dentro da própria ALCR.

 

Resultados

Componentes envolvidas na estruturação das ALCR

Com base nas diversas tarefas que constituíram as ALCR, identificaram-se cinco possíveis componentes associadas à estruturação das actividades. Cada componente foi designada de acordo com os seus objectivos no âmbito das ALCR:

  • Preparação para a Leitura (PL): tarefas cujo objectivo seria o de preparar, a diversos níveis (auditivo, rítmico e/ou melódico), a leitura do repertório a trabalhar, mas sem que houvesse ainda contacto com a partitura.
  • Leitura do Repertório (LR): tarefas relacionadas com a leitura propriamente dita da melodia. Tratou-se da componente central das ALCR, destinada à descodificação da notação musical presente na partitura.
  • Estratégias de Correção da Leitura (ECL): momentos de interrupção da LR destinados especificamente à correcção de elementos de leitura (melódicos, rítmicos ou outros) através do uso de estratégias de correcção.
  • Tarefas Complementares (TC): conjunto de tarefas pontuais que podiam ocorrer ao longo da ALCR e que envolviam outros objectivos que não os de leitura. Geralmente, possuíam um cariz mais teórico.
  • Actividades Pós-Leitura (APL): tarefas realizadas após concluída a LR e que, embora fazendo parte das ALCR, teriam como objectivo realizar outro tipo de actividades (que não as de leitura) partindo do mesmo repertório, e desenvolvendo assim outro tipo de competências.

 

Tabela 2 – Componentes envolvidas nas ALCR

Componentes

Preparação para a Leitura

 (PL)

Leitura do Repertório

(LR)

Estratégias de Correcção da Leitura

(ECL)

Tarefas Complementares

(TC)

Actividades Pós-Leitura

(APL)

 

Os Gráficos 1 e 2 apresentam a expressão de cada componente em termos de ocorrência e de duração, respectivamente. Observa-se que as tarefas de PL, LR e ECL ocorreram em todas as ALCR (Gráfico 1) e que, em conjunto, ocuparam a maior percentagem de tempo da actividade, com uma média de 76,7% (Gráfico 2). Relativamente à duração de cada componente em particular, foi à LR que se dedicou, em média, mais tempo (43,8%), quase metade da duração da ALCR (Gráfico 2). As TC e as APL, embora não tendo ocorrido em todas as ALCR, também surgiram com alguma frequência (Gráfico 1). Verifica-se que as TC foram a componente menos expressiva em termos de duração (Gráfico 2).

 

Gráfico 1 – Ocorrência das cinco componentes das ALCR

grafico 01

 

Gráfico 2 – % de tempo dedicada, em média, a cada componente durante a ALCR

grafico 2

 

Breve Análise das Componentes

Para além do objectivo geral de cada componente, foi possível distinguir, para cada uma, tipos de tarefas de natureza mais específica. Para melhor compreender as possibilidades de estruturação das ALCR, faz-se uma breve análise de cada componente, incidindo sobre os tipos de tarefas nela envolvidos e sobre os aspectos mais relevantes.

Preparação para a Leitura (PL)

A PL foi a componente que iniciou todas as ALCR, e podia incluir tarefas de: 1. Preparação Sensorial (PLPSens) – tarefas de cariz sensorial (auditivo, melódico, rítmico) que tinham o objectivo de preparar a leitura mas sem que houvesse ainda contacto com a notação[3]; e 2. Preparação com Notação (PLPNot) – exercícios de leitura preparatórios que já envolviam notação, mas (ainda) não a específica da partitura[4].

 

Tabela 3 - Tipos de PL

PL

Preparação Sensorial

(PLPSens)

Preparação com Notação

(PLPNot)

 

Os professores optaram por realizar os dois tipos de tarefas de PL durante as ALCR (tanto de PLPSens, como de PLPNot), sendo raro optarem por apenas um dos tipos (Gráfico 3). Na maioria das ALCR observadas (11 em 14), as tarefas de PLPSens precederam as tarefas de PLPNot, embora depois pudessem ocorrer alternadamente[5].

 

Gráfico 3 - Ocorrência dos dois tipos de PL

 grafico 3

 

Leitura do Repertório (LR)

A componente de LR, central nas ALCR, podia incluir: 1. Estratégias Prévias de Leitura (LREPLeit) – estratégias que precediam a leitura da melodia propriamente dita, mas já com o foco na partitura[6]; 2. Leituras Parciais (LRParc) – momentos de leitura de maior ou menor duração, e marcados por interrupções (em geral destinadas a feedback, a instruções, e a estratégias de correcção da leitura); 3. Leitura Integral (LRLInt) – leitura integral da peça, i.e., feita do início ao fim e sem interrupção; e a 4. Leitura do Acompanhamento (LRAcomp) – leitura de outra parte que não a da linha vocal (uma das linhas do acompanhamento).

 

Tabela 4 - Tipos de LR

LR

Estratégias Prévias de Leitura

(LREPLeit)

Leituras Parciais

(LRLParc)

Leitura Integral

(LRLInt)

Leitura do Acompanhamento

(LRLAcomp)

 

Durante a realização das ALCR, a LR foi essencialmente composta por LRLParc que, para além de terem ocorrido em todas as ALCR (Gráfico 4), ocuparam a maior percentagem de duração da LR, com uma média de 67,0% (Gráfico 5). As LRLInt, apesar de frequentes, ocuparam pouco tempo e foram feitas, quase sempre, na fase conclusiva da LR (Gráfico 6). Quanto aos restantes tipos de tarefas, verificou-se que as LREPLeit também ocorreram com frequência e que a LRLAcomp, pelo contrário, ocorreu muito raramente (Gráfico 4).

 

Gráfico 4 - Ocorrência dos quatro tipos de LR

grafico 4

 

Gráfico 5 - % de tempo dedicada, em média, a cada um dos quatro tipos de LR

grafico 5

 

Gráfico 6 - Ocorrência da LRLInt no início da LR vs. no final da LR

grafico 6

 

Estratégias de Correcção da Leitura (ECL)

Ao contrário das tarefas pertencentes às restantes componentes, que podiam ser definidas a priori como parte da estruturação da actividade, as ECL foram decididas e introduzidas a posteriori, consoante o desempenho e as dificuldades sentidas pelos alunos durante as tarefas de LR.

Foi possível identificar quatro grupos de estratégias, de acordo com o tipo de elementos a que se destinavam as correcções: 1. ECL de Melodia (ECLMel) – destinadas à correcção de elementos melódicos (secções da melodia, notas específicas ou afinação)[7]; 2. ECL de Ritmo (ECLRit) – para corrigir elementos rítmicos[8]; 3. ECL de Nomes de Notas (ECLNdn) – centradas na correcção dos nomes de notas[9]; e ainda 4. ECL de Harmonia (ECLHarm) – para os casos em que se realizou algum tipo de trabalho harmónico com o repertório[10].

 

Tabela 5 - Tipos de ECL

ECL

ECL de Melodia

(ECLMel)

ECL de Ritmo

(ECLRit)

ECL de Nomes de Notas

(ECLNdn)

ECL de Harmonia

(ECLHarm)

 

Como é possível observar no Gráfico 7, as ELCMel ocorreram em todas as ALCR, enquanto as restantes foram muito pouco frequentes. Adicionalmente, verificou-se que as ECLMel mais comuns (que ocorreram em todas as ALCR) estiveram relacionadas com a leitura ou com a entoação de elementos isolados da melodia[11].

 

Gráfico 7 - Ocorrência dos quatro tipos de ECL

 grafico 7

 

Tarefas Complementares (TC) e Actividades Pós-Leitura (APL)

Por não terem ocorrido em todas as ALCR observadas (Gráfico 1), as TC e APL podem ser consideradas as componentes «opcionais» deste tipo de actividades.

A nível de tarefas realizadas, as TC incluíram: 1. Análise da Partitura (TCAPart) – recolha de informação da partitura, geralmente com cariz mais teórico[12]; 2. Exercícios Teórico-Cognitivos (TCETCogn) – questões colocadas pelo professor sobre determinados elementos ou conteúdos[13]; e 3. Exercícios Auditivos (TCEAud) – tarefas pontuais de descodificação auditiva de determinados elementos presentes no repertório[14]. Nas 12 ALCR em que houve TC, observou-se que os professores realizaram sempre TCAPart, sendo os restantes tipos de TC pouco frequentes (Gráfico 8).

 

Tabela 6 - Tipos de TC

TC

Análise da Partitura

(TCAPart)

Exercícios Teórico-Cognitivos

(TCETCogn)

Exercícios Auditivos

(TCEAud)

 

Gráfico 8 - Ocorrência dos três tipos de TC

grafico 8

 

Já as APL, nas ALCR em que surgiram, ocorreram sempre quando concluídas as tarefas de PL, LR e de ECL. Identificaram-se dois tipos de APL: 1. Abordagem Performativa (APLAPerf) – quando, concluída a leitura, a execução da peça foi mais direccionada para a performance[15]; e 2. Actividades Formativas (APLAForm) – casos em que se usou o mesmo repertório para outro tipo de actividades formativas, mas de natureza distinta da leitura[16].

 

Tabela 7 - Tipos de APL


APL

Abordagem Performativa

(APLAPerf)

Actividades Formativas

(APLAForm)

 

Nas 11 ALCR em que houve APL, os professores optaram tendencialmente pelas APLAPerf, sendo as APLAForm menos habituais. Apenas em uma das ALCR se realizaram tarefas dos dois tipos, o que indica que, para concluir as ALCR, os professores tendem a escolher ou APLAPerf, ou APLAForm, e raramente as duas (Gráfico 9).

 

Gráfico 9 - Ocorrência dos dois tipos de APL

grafico 9

 

Por fim, sendo a presença de texto uma das características que caracteriza o repertório usado nas ALCR, interessou observar se este elemento era considerado ou não relevante. Das 9 ALCR em que houve APLAPerf, a leitura do repertório com texto ocorreu em 4 delas – logo, no total de ALCR observadas neste estudo (N=14), em apenas 4 (menos de 30%) se optou por associar texto à melodia (Gráfico 10). Esto baixo número sugere que o texto não parece ser, afinal, considerado essencial para a estruturação das ALCR.

 

Gráfico 10 - Leitura do repertório com texto vs. sem texto no total de ALCR

grafico 10

 

CONCLUSÕES

Este estudo teve como principal objectivo compreender, a partir das tarefas observadas e registadas, qual o tipo de estruturação associado às Actividades de Leitura de Canções de Repertório (ALCR) realizadas no âmbito das aulas de FM. Os resultados permitiram obter as seguintes conclusões:

  1. a) As ALCR envolvem, regra geral, três componentes (i.e., conjuntos de tarefas) principais: Preparação para a Leitura (PL), Leitura do Repertório (LR) e Estratégias de Correcção da Leitura (ECL), findas as quais os objectivos das ALCR tendem a ser cumpridos. Para além das três componentes principais, as ALCR podem incluir mais duas componentes: Tarefas Complementares (TC) e Actividades Pós-Leitura (APL).[17]
  2. b) Todas as ALCR foram iniciadas por tarefas de PL, o que faz com que esta componente constitua a primeira «etapa» das ALCR. Na componente de PL, os professores costumam incluir tanto tarefas de Preparação Sensorial (PLPSens), como de Preparação com Notação (PLPNot), sendo que as tarefas de PLPSens precedem, habitualmente, as de PLPNot.
  3. c) A LR é a componente que assume o maior peso em termos de duração, ocupando, em média, quase metade da duração da ALCR. A LR é essencialmente constituída por Leituras Parciais (LRLParc), que vão alternando com ECL. Os professores têm ainda a preocupação de realizar Leituras Integrais (LRLInt), quase sempre realizadas na fase conclusiva da LR. Estes dados revelam que a LR é essencialmente feita por secções, até ser possível realizar, mais tarde, uma leitura integral.
  4. d) Ao contrário das tarefas incluídas nas componentes PL, LR, TC e APL (que podem ser definidas a priori como parte da estruturação da ALCR), as ECL serão sempre definidas a posteriori, uma vez que estão dependentes da resposta dos alunos, procurando solucionar as dificuldades que vão surgindo ao longo da LR. A introdução de ECL cria uma dinâmica de alternância entre tarefas de leitura e tarefas de correcção (daí a natural prevalência de LRLParc). A maior parte das ECL usadas destina-se à correcção de elementos melódicos, o que sugere que as dificuldades dos alunos se prendem mais com aspectos da melodia e/ou que os professores terão mais tendência para escolher repertório com maior desafio melódico do que, por exemplo, rítmico.
  5. e) Relativamente às componentes opcionais (TC e APL), observa-se que as TC surgem apenas pontualmente ao longo das ALCR, sendo a maioria relacionada com a Análise da Partitura (TCAPart). No entanto, as TC são também tarefas às quais os professores dedicam muito pouco tempo. Já as APL ocorrem quando concluídas as componentes de PL, LR e ECL, constituindo assim, e por oposição à PL, a última etapa das ALCR. Quando realizam APL, os professores tendem a optar ou por Actividades Performativas (APLAPerf) ou por Actividades Formativas (APLAForm), sendo mais frequente a realização de APLAPerf.
  6. f) Por fim, apesar de o repertório das ALCR envolver a presença de texto, a inclusão deste elemento na actividade revelou-se apenas opcional e, na verdade, muito pouco frequente – o texto foi trabalhado em apenas em 4 das 14 ALCR observadas (i.e., 28,6%), um número muito pouco expressivo.

As conclusões acima enunciadas oferecem-nos uma ideia de como os professores de FM tendem a organizar e a guiar as ALCR no âmbito da sua aula, levando-nos a reflectir acerca de determinados aspectos relacionados com estruturação e com objectivos.

Em primeiro lugar, a existência de uma estruturação associada às ALCR, estruturação que envolve componentes comuns a todas elas (PL, LR e ECL), demonstra que os professores de FM reconhecem a importância de «conduzir» as actividades de forma gradual através de um conjunto de tarefas e estratégias variadas, criando uma série de etapas a ultrapassar até que o objectivo final seja alcançado. Ou seja, uma ALCR não é apenas constituída pela leitura propriamente dita, mas antes por um conjunto de tarefas diversas, a realizar desde que a actividade tem início até que é dada por concluída.

Por outro lado, o facto de os professores terem incluído sempre estratégias de preparação para a leitura (PL) e de correcção da leitura (ECL) confere às ALCR um carácter formativo. O papel que a PL desempenha na estruturação das ALCR revela-se muito importante, uma vez que cria uma relação entre as tarefas preparatórias e as tarefas de leitura: desta forma, os alunos poderão associar a leitura da canção (LR) aos elementos que foram previamente trabalhados (PL). Já o facto de haver tendência para iniciar a PL com tarefas de PLPSens revela a consciência por parte dos professores de FM de que, antes de qualquer contacto com a notação, é importante «despertar» sensorialmente os contextos e elementos sonoros aos quais a notação será depois associada.

Uma LR feita por secções (LRLParc) e sempre em alternância com ECL, como se observou neste estudo, acaba por criar uma sequência de etapas ou de pequenos objectivos a vencer dentro da própria LR. Este aspecto revela-se particularmente importante, tendo em conta que o uso de estratégias eficazes (que permitem ir superando, de forma gradual, o desafio da leitura) direcciona a LR para a aquisição/desenvolvimento das competências de leitura. Será também por esta razão que, nas ALCR, a realização de LRLInt finais (que traduzem o cumprimento do objectivo após a superação do desafio) é mais importante do que as LRInt iniciais (mais relacionadas com a leitura à 1ª vista).

Quando as APL são incluídas nas ALCR, o facto de os professores preferirem direccioná-las para a performance (APLAPerf) reflecte alguma preocupação sua em definir objectivos musicalmente mais interessantes para concluir as ALCR, dando aos alunos a oportunidade de fazer música após trabalhada a vertente mais formativa (desenvolvimento da leitura). No entanto, há que considerar que esta não é uma opção transversal e que, de facto, nem sempre a performance é trabalhada.

Por fim, e ainda no âmbito da performance, o facto de raramente se trabalhar o texto leva-nos a questionar se, em termos de estruturação, as ALCR serão muito diferentes de outras actividades de leitura melódica realizadas nas aulas de FM (melodias sem texto, com ou sem acompanhamento). Há que admitir que a inclusão do texto significará «gastar» mais tempo com as ALCR e, consequentemente, mais tempo de aula, até porque a sua inclusão poderá implicar um retrocesso significante na fluência da leitura que já fora, entretanto, alcançada. No entanto, considerando que o texto é talvez o elemento que mais distingue o repertório usado nas ALCR (e considerando que a própria melodia poderá ter sido escrita em função do texto), questionamo-nos se não fará sentido, apesar de tudo, trabalhá-lo em proveito de uma visão precisamente mais performativa no contexto de aula de FM, e que certamente contribuirá para melhor conhecer, compreender e interpretar a peça do ponto de vista musical.

Como conclusão deste estudo, espera-se que os professores de FM possam reflectir acerca da forma como estruturam as ALCR, tendo em conta os objectivos que definem para estas actividades: pensando em desenvolver, naturalmente, as competências de leitura dos seus alunos (através das tarefas e estratégias propostas); mas considerando, também, a hipótese de explorar mais musicalmente as particularidades da canção de repertório.

 

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[1] Na literatura consultada em inglês, este conceito denomina-se por Transfer.

[2] Alguns dos professores cederam mais do que uma gravação, permitindo obter o total de 14 ALCR.

[3] Exemplos de PLPSens: entoação de escalas, graus da escala e ordenações; entoação de padrões melódicos ou de células rítmicas por imitação; descodificação auditiva de graus da escala.

[4] Exemplos de PLPNot: leitura apontada de notas da escala; leitura de células rítmicas escritas no quadro.

[5] Durante a PL, as tarefas de PLPSen e de PLLPrep foram realizadas muitas vezes em alternância, e não numa sequência fixa. Adicionalmente, e apesar de terem iniciado sempre as ALCR, as tarefas de PL (PLPSens ou PLPNot) também podiam ser reintroduzidas mais tarde, se necessário.

[6] Exemplos de LREPLeit: leitura de notas isoladas; leitura de parte da melodia sem ritmo (nota a nota); leitura do ritmo da melodia sem entoação.

[7] Exemplos de ECLMel: leitura ou entoação de notas isoladas; leitura de secções da melodia sem ritmo (nota a nota); leitura da melodia com números (graus da escala); correcção de sons ou da afinação com base no acompanhamento.

[8] Exemplos de ECLRit : leitura do ritmo da melodia sem entoação (com ou sem nomes de notas).

[9] Exemplos de ECLNdn: leitura dos nomes de notas (de parte da melodia) sem ritmo e sem entoação.

[10] Exemplos de ECLHarm: adição gradual de vozes na entoação de acordes a quatro vozes (LRAcomp).

[11] Nestes casos, os professores pediram aos alunos que lessem ou entoassem notas ou secções específicas da melodia, de forma a corrigir os sons necessários (como: a paragem num determinado som; a leitura de uma secção da melodia nota a nota; ou a repetição em loop de parte da melodia).

[12] Exemplos de TCAPart: identificação da tonalidade a partir da armação de clave; identificação do fraseado musical (através do desenho melódico ou do texto); recolha de informação presente na partitura (título, compositor, poeta, ou outros símbolos da notação).

[13] Exemplos de TCETCogn: identificação de armações de clave sugeridas pelo professor; associação de nomes de notas a graus da escala (pedidos pelo professor).

[14] Exemplos de TCEAud: identificação de cadências.

[15] Exemplos APLAPerf: leitura do repertório com texto ou com sílaba neutra; leitura com dinâmicas ou com condução do fraseado musical.

[16] Exemplos de APLAForm: análise harmónica da peça; execução instrumental do acompanhamento.

[17] As características de cada componente, e respectivas sub-categorias, são descritas no capítulo Resultados.