Resumo
A dislexia é uma síndrome que envolve disfunções neurológicas e que se manifesta causando dificuldades de aprendizagem. Através de dois estudos de caso direcionados a estudantes de flauta diagnosticados clinicamente com dislexia, e utilizando ferramentas de observação direta e questionário, este artigo pretende apresentar um conjunto de estratégias pedagógicas específicas que visam proporcionar uma aprendizagem musical eficaz, motivadora e gratificante. Através da adaptação da prática pedagógica, procura-se identificar as dificuldades musicais percecionadas pelos alunos disléxicos, conhecer a opinião dos pais sobre o seu estudo individual, e reconhecer possíveis mudanças na prática (e na motivação) após a aplicação de novas estratégias de aprendizagem.
Palavras-Chave: Dislexia, estratégias de aprendizagem musical, flauta.
Abstract
Dyslexia is a syndrome that involves neurological dysfunction and manifests itself causing learning difficulties. Through two case studies applied to flute students clinically diagnosed with dyslexia, and using direct observation and questionnaire tools, this article intends to present a set of specific pedagogical strategies that aim to provide effective, motivating and rewarding musical learning. Through pedagogical practice’s adaptation, it is sought to identify the musical difficulties perceived by the dyslexic students, to know the parents’ opinion about their individual study, and to recognize possible changes in practice (and motivation) after applying new learning strategies.
Keywords: Dyslexia, music learning strategies, flute.
Introdução
A dislexia insere-se nas “Dificuldades de Aprendizagem Específicas”1 (Specific Learning Difficulties - SpLD) e afeta aproximadamente 10% da população mundial.2 Nesta, os portadores têm um potencial intelectual médio, sem perturbações visuais ou auditivas, mas podem apresentar dificuldades inesperadas ao nível psicoeducacional (e.g. ler, escrever ou contar), e ao nível psicossocial e/ou psicomotor (e.g. desenhar, pintar, orientar-se no espaço, ou interagir socialmente).1 Alguns autores (e.g. Siegel, 2003)3 salientam que este diagnóstico só pode ser realizado quando o indivíduo apresenta um resultado de QI dentro, ou acima da média, e não apresenta perturbações emocionais graves ou um défice linguístico.
A principal dificuldade cognitiva na dislexia reside na componente fonológica, patenteada na capacidade de refletir sobre a estrutura sonora das palavras. Nesta condição, a velocidade e o processamento (receção, retenção, recuperação e estruturação) da informação são, também, afetados.4,5,6,7 De facto, em 1992, Alan Kamhi formulou uma definição que descreve a dislexia de acordo com características específicas - codificação, recuperação e consciência fonológica - e não, simplesmente, enquanto uma deficiência ao nível da leitura; ao especificar a natureza do processamento fonológico, a definição exclui os indivíduos cujos problemas de leitura se devem a outros fatores (perda de audição, deficiência visual ou mental), não afetando outros “domínios de funcionamento cognitivo”, como a compreensão e o raciocínio (Kamhi, 1992).4
Acredita-se que a dislexia tem uma base neurológica e uma origem genética,7,8 e que o substrato cerebral do défice fonológico se encontra em algumas áreas do hemisfério esquerdo do cérebro, onde as anomalias são subtis e tomam a forma de migrações celulares em certas camadas do córtex.4,6 Uma vez que, na atividade musical, se tem associado o córtex auditivo do hemisfério direito ao processamento da altura dos sons (“pitch”), e a informação rítmica (e pulsação) tem estado associada ao córtex cerebral do hemisfério esquerdo (Zatorre et al., 1992, Peretz, 2003),9 as funções do hemisfério esquerdo no indivíduo disléxico, tais como o ritmo, podem estar enfraquecidas.9,10
Um aluno disléxico poderá ter dificuldade em interiorizar e aplicar os conceitos de som “agudo” e “grave”, apresentar um processamento auditivo lento (na linguagem e na música), revelar dificuldades na perceção da pulsação e do ritmo, na leitura da notação musical e na leitura à primeira vista, na aprendizagem e memorização da organização das escalas e arpejos (e.g. tríades, sétimas, inversões), na recordação de uma frase melódica (ou rítmica), na transferência do conteúdo da partitura para o instrumento (especialmente dedilhações), bem como problemas de lateralidade.7,10,11,12,13 Ao nível visual poderá ter dificuldade em ajustar a visão entre o longe e o perto, e em manter a visão focada e uma leitura direcional estável, comprometendo a interpretação do texto e dos símbolos [musicais].7,10
Uma fraca memória de curto prazo é frequentemente observada nos alunos disléxicos, o que significa que podem esquecer o que “acabaram de aprender” ou praticar.7,13 A dislexia também tem um efeito que pode envolver a memória muscular (o ato de recordar fisicamente uma sequência de notas). O processamento mais lento da notação conduz, portanto, a um desenvolvimento mais lento da memória muscular, o que significa que a música demora mais tempo a ser recordada/armazenada.14 Neste sentido, a prática musical regular, e várias vezes ao dia, possibilita reiteradas oportunidades para a música ser transferida da memória de curto prazo para a de longo prazo.9 Além disso, as sessões estudo curtas e regulares são, geralmente, mais eficazes do que sessões mais longas, mas menos frequentes.9
A memória de trabalho também pode ser afetada pela dislexia, causando problemas aquando da leitura à primeira vista. De facto, os alunos disléxicos podem dar a impressão de que estão a ler notação musical quando, de facto, estão a “tocar de ouvido” ou de memória. Uma discrepância entre a leitura à primeira vista e uma execução “habitual” é, muitas vezes, a primeira indicação de uma dificuldade disléxica.15
De acordo com Saunders et al., apenas cerca de 14% dos professores revelam saber reconhecer uma criança disléxica, e menos de 9% sabem como poder ensiná-la.2 É importante notar que a condição disléxica é variável: nem todas as pessoas apresentam as mesmas dificuldades, e estas manifestam-se com diferentes graus de intensidade.5 Uma vez que se apresenta de forma única em cada indivíduo, a dislexia requer uma abordagem altamente individualizada, sendo importante considerar estilos de aprendizagem ao planear intervenções e adaptações.2 A identificação precoce e a intervenção são a chave para ajudar os disléxicos a terem sucesso na educação escolar e na vida.10
Uma criança disléxica pode manifestar dificuldades de concentração o que, aliado ao stress e ao medo de falhar, gera frustração.7,10,13,15 Para compensar o défice de atenção é necessário efetuar pausas frequentes no decorrer das aulas [e do estudo individual], zelando para que a duração das mesmas não seja excessiva.10 Ao mesmo temo, o professor deve falar calmamente, tentar usar frases curtas e atestar que o aluno compreendeu cada instrução antes de continuar. É importante lembrar que, devido à velocidade de processamento mais lenta e à fraca memória, o indivíduo disléxico pode debater-se com dificuldades em organizar a informação que lhe é transmitida. A informação pode ser normalizada se estiver ligada a outra: é preciso construir nova informação sobre o conhecimento existente. Assim, a repetição regular de informação importante e a introdução lenta de novas competências são requisitos fundamentais para o sucesso do aluno.7,13
É também determinante que o professor incentive o aluno a aplicar técnicas específicas de estudo. Aquando da prática musical, deve ser encorajado o recurso à execução lenta, ao estabelecimento de marcações na partitura, à análise musical, à determinação de objetivos, à prática mental, à distribuição adequada do tempo durante o estudo individual3,9 e, sempre que possível, o recurso à abordagem multissensorial, o que inclui o treino de solfejo do ritmo (e das notas) e a sua associação a movimentos corporais [andar, marchar, bater palmas].7,9,10 O aluno precisa de olhar, ouvir, tocar, atender aos movimentos da mão e/ou da boca, e coordenar os movimentos dos olhos com os das mãos. A utilização de mais “modalidades de sentir” significa que os sentidos mais fracos recebem apoio dos mais robustos e que “os sentidos se apoiam mutuamente”.5,13,16
Como referem Tim Miles and John Westcombe (2001): “[a] central characteristic of musical notation is that it conveys a large amount of information within a small space.”16 A música escrita contém uma importante componente espacial, o que pode ser particularmente desafiante para os estudantes disléxicos, uma vez que estes estudantes têm por vezes dificuldades específicas em discriminar entre esquerda e direita, agudo e grave, e padrões ascendentes e descendentes.7,10,12,15Assinalar padrões (melódicos e/ou rítmicos) na partitura do aluno pode ajudar a tornar a música mais explícita. Questioná-lo relativamente à existência de arpejos, escalas, ou ritmos recorrentes na peça que está a tocar, pode tornar a música mais simples, e fácil de compreender. Muitas vezes a música resume-se apenas a alguns compassos que se vão repetindo; pedir ao aluno que digite no instrumento esses padrões (sem criar som) pode permitir a sua melhor [perceção e] assimilação. Uma vez que o aluno disléxico dá, preferencialmente, atenção a pistas mais superficiais (quer uma nota específica esteja na linha ou entre linhas), o processo de aprendizagem associativa parece desempenhar um papel importante, pelo que deve ser dada particular ênfase à familiarização com os padrões em constante mudança da notação musical.12
O uso de diferentes cores tem sido uma das ferramentas mais amplamente utilizadas por professores de música com alunos disléxicos. Com as cores pretende-se destacar um ou mais aspetos da partitura que o aluno deve ter em conta, por exemplo: notas alteradas, dedilhações, frases musicais, secções que se repetem, dinâmicas, entre outros.2,7,12,13,14,15
A Figura 1, que se segue, representa uma possível abordagem ao Estudo n.º 7, para flauta, em Fá maior, de Giuseppe Gariboldi (Thirty Easy and Progressive Studies): primeiramente apresenta-se, de forma organizada, uma grelha com alguns elementos considerados determinantes na abordagem ao estudo. Note-se que tanto a macroestrutura (ABA) como a microestrutura (linhas verdes e roxas) foram estabelecidas com o intuito de tornar mais clara a compreensão da estrutura musical e de facilitar a sua memorização. Alguns detalhes da partitura são apontados com cores diferentes: amarelo referindo-se ao staccato/legato; azul aos acentos; uma pequena caixa verde, algumas notas musicais e informação aludindo à contagem/métrica, foram também acrescentadas para evitar possíveis erros recorrentes.
Figura 1 – Excerto do Estudo n.º 7 de Giuseppe Gariboldi (adaptado de Alves & Inácio, 2019).17
Harry, P., Adams, S. (1998). 76 Graded Studies for Flute, Book One. London: Faber Music.
É determinante, assim, elaborar com o aluno o seu método de estudo musical. Esta organização implica prática instrumental diária, com tempos de estudo predefinidos em conjunto, e o estabelecimento de metas e de objetivos realistas [a curto e médio prazo; por um lado, as aulas semanais, e por outro, os exames e audições].2 Uma adequada forma de ensinar deve estar alicerçada no conhecimento das capacidades do aluno e nas estratégias de compensação individual, bem como na adaptação da metodologia de aprendizagem em conformidade. Por conseguinte, é especialmente importante que os professores estejam conscientes dos pontos fortes e fracos particulares a cada aluno, encorajando os alunos a analisar o seu próprio estilo de aprendizagem.2,7,13
Com este estudo investigacional pretende-se determinar se a aplicação contínua de metodologias e estratégias de aprendizagem em contexto de prática de Flauta Transversal em alunos disléxicos aumenta os níveis de motivação, de autoeficácia, de consciencialização, de autocrítica/autoavaliação, de autorregulação e capacidade de estudo individual destes alunos.
Métodos
Estudo investigacional qualitativo prospetivo – Estudo de Casos decorrido entre outubro de 2016 e junho de 2017 no Conservatório de Música D. Dinis – Odivelas (Portugal). Recorreu-se a uma amostra de 2 alunos disléxicos com 11 e 15 anos, que frequentaram aulas de flauta com a duração de 45 minutos semanais.
Ao longo do período do estudo utilizou-se um conjunto de estratégias de aprendizagem contínua em contexto de prática instrumental - Flauta Transversal (Quadro 1), baseadas nas características prévias dos discentes - idade, formação académica/escolaridade, musical e as condições sócio-motivacionais.
Quadro 1 – Estratégias de Aprendizagem Musical de Flauta Transversal em Contexto de Dislexia (Inédito do autor).
Estratégias de Aprendizagem Musical de Flauta Transversal em Contexto de Dislexia |
|
Como ferramentas investigacionais utilizou-se a técnica de questionário escrito, dirigido aos alunos diagnosticados com dislexia, e aos respetivos encarregados de educação, bem como a observação direta.
A observação direta desenvolvida no âmbito deste projeto fundamentou-se em planos prévios anuais e de aula, no registo escrito contínuo e no registo áudio/visual, não oculto, das aulas.
O questionário efetuado, constituído por perguntas de caráter aberto, procurou conhecer/identificar as dificuldades não-técnicas percecionadas pelos alunos disléxicos aquando da prática musical com a flauta transversal, caracterizar o seu estudo individual ao nível da estruturação, autoconsciência e sentido crítico, saber se foi percecionado um aumento de capacidade em recorrer a ferramentas no estudo individual, bem como aferir mudanças ao nível da motivação e da autonomia, com a implementação de novas estratégias de aprendizagem.
Resultados
Ao longo do período do estudo, e através de observação direta, identificou-se em ambas as alunas características sobreponíveis, nomeadamente, dificuldades ao nível da memória, sobretudo da memória de curto prazo, e de concentração. Também se observou dificuldade de organização, de perceção e de processamento da informação visual e auditiva (nomeadamente, perceção rítmica), e na sua compreensão.
Ao nível musical observou-se, frequentemente, pouca orientação espacial na partitura, inversão de padrões rítmicos/melódicos, bem como dificuldade em fazer corresponder as notas musicais existentes na partitura e a respetiva dedilhação na flauta. Para além disso, as discentes revelaram alguma dificuldade no recurso a ferramentas de autoavaliação do seu trabalho individual, bem como momentos frequentes de cansaço intelectual, que levaram à perda de concentração e consequente frustração.
Durante o período de estudo constatou-se uma melhoria das dificuldades referidas anteriormente, nomeadamente no reconhecimento da estrutura da partitura, na redução de erros ao nível da execução de padrões rítmicos/melódicos e na correspondência entre as notas musicais existentes na partitura e a respetiva dedilhação na flauta.
Nas melhorias observadas, a estratégia mais eficaz foi o isolamento das secções musicais consideradas difíceis, que foram, primeiramente, digitadas no instrumento, solfejadas em seguida e, por fim, executadas através da digitação e do solfejo falado. Com a implementação das novas estratégias verificou-se um aumento contínuo e progressivo da autonomia e da motivação das alunas, bem como da aquisição de competências ao nível do estudo individual.
No que se refere aos resultados obtidos através da análise de conteúdo da técnica de questionário, as alunas afirmaram ter dificuldades em efetuar a coordenação entre as notas escritas na partitura e os respetivos ritmos, referindo que a utilização da estratégia de isolamento da parte rítmica, relativamente à melódica, e o uso da digitação, enquanto elemento cinestésico da aprendizagem, facilitaram a sua aprendizagem e motivação. As alunas referem que, inicialmente, não tinham consciência da necessidade de estruturar e criticar o seu estudo individual. Com a implementação das novas estratégias e técnicas, passaram a organizar o seu estudo de uma forma mais crítica e metódica, o que as motivou para um exercício musical (praticamente) diário, em busca do sucesso.
Os encarregados de educação observaram, por sua vez, uma evolução ao nível da autonomia, da motivação, da autoconscencialização, da autocrítica e da autorregulação. As alunas progrediram ao nível flautístico, estruturando e organizando o seu estudo, fazendo referência às secções onde eram sentidas maiores dificuldades.
Para os encarregados de educação, a insistência e o reforço do tempo de estudo permitiu às discentes progredirem na sua aprendizagem, tornando-se mais confiantes. A sua motivação foi crescendo à medida que iam ultrapassando as dificuldades, ficando satisfeitas com a sua realização musical e com o feedback positivo dado pelo professor.
Discussão
As dificuldades na prática musical ao nível da memória, da organização, do processamento da receção de informação visual e auditiva, e na sua compreensão, e da concentração, identificadas em ambas as alunas, são frequentemente observadas em alunos com dislexia, sendo fundamental que o professor esteja particularmente atento ao seu grau de concentração (e de cansaço).2,4,10
É referido pelas alunas a frequente dificuldade em tocar as notas escritas na partitura e coordená-las com os respetivos ritmos. Para ultrapassar estas dificuldades recorreram a outras componentes do exercício musical, nomeadamente, o isolamento da parte rítmica, relativamente à melódica, e o uso da digitação, enquanto elemento cinestésico da aprendizagem. Para vários autores (e.g. Eren, 2017; Gyarmathy, 2017; Oglethorpe, 2002; etc.), a aprendizagem multissensorial pode ser a ferramenta mais importante no ensino da música. O ensino-aprendizagem deve ser desenvolvido com recurso a três elementos fundamentais, nomeadamente, visão, audição e cinestesia: “[t]he dyslexic student greatly benefits from multi-sensory teaching because learning is reinforced”.2 Com o recurso a estratégias conscientes de resolução de problemas, as alunas evidenciaram alguma autonomia.
As alunas referem que, inicialmente, não tinham consciência da necessidade de estruturar e criticar o seu estudo individual. Todavia, com a implementação das novas estratégias e técnicas de estudo, passaram a organizar o seu estudo de uma forma mais crítica e metódica. Segundo Swanwick e Tillman (1986),9 as mudanças operadas na estrutura de estudo e prática individual parecem estar associadas ao aumento de consciência e de metacognição. Neste sentido, é determinante elaborar com o aluno o seu método de estudo musical. Esta organização implica prática instrumental diária e o estabelecimento de metas e objetivos realistas.2
Com o recurso às estratégias defendidas pelo professor/autor, as alunas evidenciaram autonomia e autoconsciência, uma vez que passaram a controlar a sua aprendizagem através da definição de objetivos, escolhendo e criando cursos de ação (Bandura, 1991; Locke & Latham, 1990),3 tomando decisões de forma intencional, consciente e contextualizada, compreendendo os seus pontos fortes e fracos. Para além disso, o uso destas estratégias de estudo foi visto como útil pelas discentes, uma vez que conseguiram preparar o repertório mais rapidamente, executando-o com maior fluência, permitindo-lhes ter maior autonomia, a qual é vista como uma das grandes finalidades da prática educativa.3,9
Para os encarregados de educação, a insistência e o reforço do tempo de estudo, permitiu às discentes progredirem na sua aprendizagem, tornando-se mais confiantes, autónomas, motivadas e conscientes. A persistência e o estudo individual descritos pelos encarregados de educação estão de acordo com a linha de pensamento de F. Marques (2005) e A. Pinto (1989), uma vez que “[…] para a informação aprendida ser retida, e haver aprendizagem, é importante ensaiá-la para além do tempo necessário para a sua aquisição, sobretudo no que respeita às capacidades motoras”.3
Devido ao trabalho intensivo ao nível da organização, estruturação e repetição do repertório – associado, frequentemente, a uma fraca capacidade de memória e à necessidade de uso dos vários sentidos – os alunos disléxicos necessitam de desenvolver uma prática musical mais prolongada e regular, sem que, ao mesmo tempo, se atinja a exaustão. Assim, com este estudo observa-se que é imperativa a reflexão acerca da duração da aula de um aluno disléxico, de modo a proporcionar-lhe o tempo necessário para uma boa consolidação das aprendizagens, tendo em vista a obtenção de sucesso.
Na opinião de vários autores não existe uma correlação entre a manifestação de dislexia “textual” e dislexia “musical” (e.g. Hérbert & Cuddy, 2006),18 havendo uma independência neuroanatómica entre as estruturas responsáveis pela descodificação da leitura musical e de texto. Tal perspetiva não é partilhada por Kate Saunders e colaboradores2 que referem: “[p]eople often ask ‘Does dyslexia affect reading and learning music?’ and the answer in most cases is yes”.2 Com base nas observações realizadas ao longo deste trabalho de investigação considera-se que esta correlação existe.
Como limitações deste estudo, há que referir que a amostra reduzida e a utilização do método de estudo de casos impedem a generalização das conclusões observadas. Por sua vez, a subjetividade inerente à utilização das ferramentas investigacionais de observação direta e de questionário também constitui uma limitação.
Conclusão
A aplicação das novas estratégias de aprendizagem efetivou resultados ao nível da concentração, da autonomia, da autoconsciência e do sentido crítico das alunas. Associado ao uso de estratégias multissensoriais, as discentes e os encarregados de educação afirmaram que o estudo individual e a aprendizagem sofreram melhorias, o que levou ao desenvolvimento de perceções de autoeficácia e autoconfiança, e a uma progressão mais rápida ao nível da preparação do repertório, e consequente desenvolvimento ao nível da motivação.
O recurso à aprendizagem multissensorial é visto como fundamental, uma vez que reforça a prática musical e propicia a plasticidade cerebral, fortalecendo as conexões entre as regiões auditivas e motoras, o que pode atenuar as manifestações de dislexia.9, 19
Com este estudo observou-se que é imperativa a reflexão acerca da duração da aula de um aluno disléxico, a qual pode ser complementada com vários períodos de aula extra com durações mais reduzidas.
Ao nível investigacional ficou patente a existência de um amplo caminho a percorrer na área da Dislexia quando aplicada ao ensino e à aprendizagem da música, observando-se a necessidade de estudar novos processos ou estratégias de aprendizagem musical (e em particular no ensino e aprendizagem de instrumentos de sopro), de compreender neuro-anatomicamente e cognitivo-motivacionalmente indivíduos disléxicos em contexto de prática musical, e de realizar estudos na área do ensino da música com uma amostra populacional alargada, de modo a obter conclusões que possam ser sistematizadas e generalizadas.
Não existem dois alunos - e especialmente não existem dois alunos disléxicos - iguais. A utilização de estratégias de aprendizagem diversas e centradas no estudante, alicerçadas numa refletida organização, e com recurso frequente à repetição e à valorização das realizações levadas a cabo por este, pode assegurar o sucesso, permitindo um melhor desempenho, autoestima e motivação. Para além da educação individualizada, os portadores de dislexia devem estar inseridos num ambiente em que se sintam social e emocionalmente aceites. Por conseguinte, a inclusão é a chave para que o indivíduo disléxico seja bem-sucedido na educação e na vida.
Referências bibliográficas
- Correia, L. M. (2008). Dificuldades de aprendizagem específicas: Contributos para uma definição portuguesa. Porto: Porto Editora.
- Saunders, K., Ogelthorpe, S., Marshall, K., Daunt, S., Lea, M., Ditchfield, D. & Bishop-Liebler, P. (2013). Teacher Guide to Music and Dyslexia - Music and Dyslexia Guide. British Dyslexia Association, pp. 1-26. https://steelasophical.com/wp-content/uploads/2013/10/www.rhinegold.co_.uk_downloads_magazines_music_teacher_music_teacher_guide_music_and_dyslexia.pdf.
- Veiga, F., Magalhães, J., Carvalho, C., Conboy, J., Caldeira, S., Nogueira J., Pereira, A. et al. (2013). Psicologia da Educação: Teoria, Investigação e Aplicação. Lisboa: Climepsi Editores.
- Hennigh, K. (2003). Compreender a Dislexia: Um Guia para Pais e Professores. Porto: Porto Editora.
- Eren, B. (2017). Music and Dyslexia: The Therapeutic Use of Instrument (Piano) Training with a Child with Dyslexia (A Case Study). Journal of Education and Practice 8 (23), pp. 97-108. ISSN-2222-288X (online); https://files.eric.ed.gov/fulltext/ED577839.pdf.
- Frith, U. (1999). Paradoxes in the Definition of Dyslexia. Dyslexia, 5, pp. 192–214. https://doi.org/10.1002/(SICI)1099-0909(199912)5:4<192::AID-DYS144>3.0.CO;2-N.
- Daunt, S. & Bishop‐Liebler, P. (2016). Music and dyslexia: definitions, difficulties, strengths and strategies - webinar slides presentation. Incorporated Society of Musicians (March). https://www.ism.org/professional-development/webinars/music-dyslexia.
- Paulesu, E., Frith, U., Snowling, M., Gallagher, A., Morton, J., Frackowiak, R. & Frith, C. (1996). Is Developmental Dyslexia a Disconnection Syndrome? Evidence from PET Scanning. Brain, 119 (1), pp. 143-57. https://doi.org/10.1093/brain/119.1.143.
- Hallam, S. (2006). Music Psychology in Education. London: Bedford Way Papers.
- Oglethorpe, S. (2002). Instrumental music for dyslexics: a teaching handbook, Second edition. London: Whurr Publishers.
- Overy, K., Nicolson, R. I., Fawcett, A. J., & Clarke, E. F. (2003). Dyslexia and Music: Measuring Musical Timing Skills. Dyslexia, 9, pp. 18–36. doi:10.1002/dys.233.
- Flach, N., Timmermans, A. & Korpershoek, H. (2014). Effects of the design of written music on the readability for children with dyslexia. International Journal of Music Education, 34 (2), pp. 234-246. https://doi.org/10.1177%2F0255761414546245.
- Gyarmathy, E. (2017). A Series of Special Education Teaching Guides: Teaching Music for Learners with Dyslexia. Erasmus+, Project No: KA 201-2015-012. https://www.academia.edu/35056438/A_series_of_special_education_teaching_guides_Teaching_Music_for_Learners_with_Dyslexia.
- Walker, J. (2019). What it’s like to read/learn music with dyslexia. PAN Journal of the British Flute Society, 38 (1), p. 33. ISSN 2052-6814.
- Thomson, M. (2007). Supporting Dyslexic Pupils in the Secondary Curriculum. Stirling: Dyslexia Scotland. ISBN: 978-1-4129-4513-4.
- Macmillan, J. (2005). “Music and Dyslexia – and How Suzuki Helps.” European Suzuki Association Web-Journal (Spring). http://www.jennymacmillan.co.uk/.
- Alves, R. & Inácio, N. (2019). Dyslexia - Learning Strategies in Flute Practice. PAN Journal of the British Flute Society, 38 (1), pp. 32-37. ISSN 2052-6814.
- Herbert, H. & Cuddy, L. (2006). Music-reading deficiencies and the brain. Advances in Cognitive Psychology, 2 (2-3), pp. 199-206. doi: 10.2478/v10053-008-0055-7.
- Kraus, N. & Chandrasekaran, B. (2010). Music training for the development of auditory skills. Nature Reviews: Neuroscience, 11, pp. 599-605. doi: 10.1038/nrn2882.